O cristianismo, ao longo de sua história, sempre esteve imerso em debates teológicos e interpretações divergentes, especialmente quando se trata da leitura das Escrituras Sagradas. As divergências entre católicos e evangélicos, em relação ao Antigo e ao Novo Testamento, tornam-se um campo fértil para o questionamento sobre o entendimento da Bíblia. A busca por uma interpretação que se alinhe aos princípios cristãos muitas vezes leva a distorções, e até mesmo a lacunas incompreensíveis, que desafiam o raciocínio lógico e a compreensão profunda da mensagem cristã.
O Antigo Testamento: História ou Doutrina?
Uma das primeiras questões que se coloca é a leitura do Antigo Testamento. A forma como católicos e evangélicos tratam as Escrituras do Antigo Testamento, muitas vezes, desconsidera o contexto histórico em que foram escritas. O Antigo Testamento deveria ser visto como história, como relatos e narrações de uma época que já passou. No entanto, para muitos cristãos, esse conjunto de livros é ainda considerado uma doutrina viva e atual, um conjunto de normas e regras divinas que precisam ser seguidas de forma rigorosa. Essa interpretação se revela incompreensível quando contrastada com a mensagem do Novo Testamento, especialmente quando se considera a visão do próprio Jesus Cristo.
Jesus, em sua passagem terrena, transformou a complexidade das leis divinas do Antigo Testamento em um único mandamento: amar e perdoar. No Novo Testamento, Ele não apenas resume as centenas de leis em um número reduzido de princípios, mas enfatiza que o amor e o perdão são as chaves para a salvação. Isso leva à reflexão de que o Antigo Testamento, em sua totalidade, deveria ser encarado como uma narrativa histórica, em vez de uma regra de vida imposta aos cristãos. No entanto, a resistência a essa visão é visível, principalmente entre evangélicos que insistem em aplicar leis e preceitos do Antigo Testamento, criando uma confusão doutrinária.
A Contradição: A Condenação das Práticas Católicas
Uma das maiores lacunas incompreensíveis surge quando consideramos as críticas dos evangélicos em relação a práticas católicas, como o uso de imagens, a intercessão dos santos, a oração pelos mortos e o culto às relíquias. Em muitos momentos, as passagens bíblicas que fundamentam essas práticas são ignoradas ou interpretadas de maneira enviesada.
Por exemplo, em Êxodo 25,18, Deus ordena a Moisés a construção de querubins de ouro para o Tabernáculo. A descrição detalhada desses seres celestiais e sua associação à presença divina tornam-se um fundamento para o uso de imagens na tradição católica, uma prática que, apesar de ser criticada pelos evangélicos, encontra respaldo nas Escrituras. As imagens, nesse caso, são vistas como símbolos da presença divina e não como objetos de idolatria, uma distinção crucial que é muitas vezes ignorada no discurso protestante.
Outro ponto de discórdia é a intercessão dos santos. Em Apocalipse 5,8, é descrito que os santos no céu intercedem pelas orações dos fiéis na terra. Essa prática de intercessão é vista como uma continuidade da tradição cristã primitiva, que acreditava na comunhão dos santos. No entanto, muitos evangélicos rejeitam essa interpretação, acusando a Igreja Católica de praticar idolatria. Ao fazer isso, ignoram uma parte significativa da tradição cristã e da própria Escritura, que evidencia o papel dos santos como intercessores entre os fiéis e Deus.
A oração pelos mortos, mencionada em 2 Macabeus 12,46, é outra área de grande discordância. Na Bíblia católica, este versículo é um suporte para a prática de rezar pelos mortos, a fim de que suas almas sejam purificadas. Por outro lado, nas versões protestantes da Bíblia, que não incluem o livro de Macabeus, essa prática é amplamente rejeitada. Isso levanta uma questão crucial: como pode um grupo de cristãos rejeitar práticas com base em livros que são considerados canônicos apenas por uma parte da tradição cristã?
As Relíquias dos Santos: Poder ou Tradição?
A crença no poder das relíquias dos santos também causa controvérsias. Em Atos 19,11, lemos que Deus realizou milagres extraordinários pelas mãos de Paulo. Em várias passagens, há referências a objetos sagrados usados para curas e milagres, como os lenços de Paulo. Os católicos, portanto, adotam o uso de relíquias como uma prática de veneração, acreditando que essas relíquias podem ser veículos de graça divina. Já muitos evangélicos veem essa prática como uma distorção da fé, acreditando que qualquer forma de culto a objetos ou pessoas além de Deus é idolatria. No entanto, as Escrituras relatam milagres operados por meio de objetos sagrados, o que cria uma tensão entre as tradições.
O Enigma das Divergências Teológicas
A primeira Bíblia traduzida integralmente para o português e publicada no Brasil foi a Bíblia Sagrada de João Ferreira de Almeida, cuja primeira edição foi publicada em 1819. Vale lembrar que, assim como o cristianismo evangélico nasceu de um bispo católico que protestou contra a Igreja Católica, a Bíblia protestante também foi editada a partir do século 16, durante a Reforma Protestante. O movimento iniciado por Martinho Lutero em 1517, com suas 95 teses contra práticas da Igreja Católica, levou a uma série de mudanças no cristianismo, incluindo a tradução da Bíblia para línguas vernáculas e a revisão dos livros considerados canônicos.
Essas divergências e lacunas são reflexos de uma interpretação superficial ou seletiva da Bíblia. Tanto católicos quanto evangélicos falham em reconhecer a diversidade e a complexidade das Escrituras. A Bíblia é um texto que transcende o tempo e as culturas, e tentar reduzir seu significado a uma interpretação dogmática é um erro comum. A verdade é que as Escrituras devem ser lidas com uma abordagem histórica, teológica e espiritual, levando em consideração o contexto em que foram escritas e a evolução do pensamento cristão ao longo dos séculos.
Em última análise, as divergências entre católicos e evangélicos são, em grande parte, resultado de uma falta de diálogo e compreensão mútua. As interpretações inconsistentes e as críticas mútuas, baseadas em uma leitura isolada da Bíblia, apenas aprofundam as divisões dentro do cristianismo. O desafio para ambos os grupos é compreender que a Bíblia é uma fonte de fé e sabedoria, mas que, ao mesmo tempo, exige humildade e discernimento na hora de interpretá-la. A busca pela unidade cristã passa, inevitavelmente, pela superação dessas barreiras teológicas, que muitas vezes mais separam do que unem os seguidores de Cristo.
Por Charles Araújo